A PERMANÊNCIA DA TRANSGRESSÃO
Por Aureliano Lopes da Silva Junior[1]
fonte: http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/versaoportugues/2c44a.pdf
Ambivalências, sempre fui muito ambivalente.
Não pareço, mas sou, é uma condição bastante interna,
mas sou; ninguém diz, mas sou.
(João Ubaldo Ribeiro – A casa dos budas ditosos)
Introdução
Este estudo originou-se de algumas inquietações advindas de minha participação em um grupo de palhaços, os “Doutores por um triz..”., inseridos na rede hospitalar de São João del-Rei – Minas Gerais(2). O grupo está em atividade desde junho de 2001 e sempre procurou refletir sobre o papel do palhaço neste ambiente, qual a importância da atuação de um doutor-palhaço em um local construído sob as bases do modelo biomédico. Este modelo prima pela técnica da medicina e procura manter o elemento humano o mais isento possível. Trabalhos como o dos “Doutores por um triz...” (e dos “Doutores da Alegria”¸ os pioneiros no Brasil) efetivam e encontram sua razão de ser justamente na crítica a este modelo através do riso, “brincando” com sua rigidez, ao mesmo tempo em que aponta e valoriza o que há de humano no hospital.
Foi atuando e observando os doutores-palhaços que me veio as perguntas: “O que é um palhaço?”, “Qual o seu papel?”. Na tentativa de clarificar tais questões e ao me debruçar um pouco mais sobre a história do palhaço, percebi que uma figura cômica por excelência, contestadora e questionadora da ordem sempre esteve presente na trajetória cultural da humanidade, seja no Ocidente, Oriente ou em tribos ditas primitivas. Buscando um fio condutor que ligasse essas múltiplas manifestações do riso me deparei com os estudos de Jung sobre os arquétipos, e neste caso específico, sobre o arquétipo do trickster.
A menção ao trickster se faz presente tanto em relatos antropológicos como em estudos mitológicos e literários, nomeando um tipo ambíguo e contraditório(3), cômico, que efetivamente zomba e transgride normas vigentes, quaisquer que sejam elas. Ele é visto como um herói e se posiciona acima do que é a regra, sendo admirado e também temido por todos.
Não pretendo reduzir o trickster à figura do palhaço; ao contrário disso, desejo aproximar tais personas objetivando ampliar a compreensão sobre o palhaço e o seu papel na cultura.
I
Antes de discorrermos sobre a origem do palhaço tal como o conhecemos hoje (caracterizado pela cor, vivacidade e pela predominância do nariz vermelho), pensamos ser de grande importância nos remetermos à figuras datadas de séculos antes de Cristo e as quais acreditamos partilharem da mesma matriz cômica do palhaço.
Segundo Alice Viveiros de Castro(4), estes tipos estiveram inicialmente ligados à rituais sagrados e tinham a função de espantar o medo e o mal, o que era feito através da imitação de deficiências humanas – como a cegueira, a lepra, deformidades físicas, entre outros. Esta ridicularização culminava em uma explosão de risos por parte de todos, aliviando e quebrando a seriedade do culto. Esta autora cita, como exemplo, os monges budistas do Tibet: eles possuem a figura do Mi-tshe-ring – o velho bufão sábio – que atrapalha todas as solenes cerimônias religiosas, incapaz de se controlar e de fazer silêncio. Ele é o não-zen em tudo(5).
Reis e imperadores sempre tiveram em suas cortes um bobo, que participava de sua intimidade e exercia certo poder de influência sobre eles. Encontramos como exemplo os anões ou corcundas que assumiam este papel nas cortes egípcias, como o pigmeu Danga, cujo nome é guardado há quatro milênios(6), ou o bufão chinês Yu Sze, que é tido como o responsável pela paralisação de uma reforma da Grande Muralha ordenada pelo imperador Shih Huang-Ti e que estava levando à morte milhares de trabalhadores(7).
Mas foi na Idade Média que esse bobo se fixou no imaginário popular como o “bobo da corte”. Ele é comumente representado com roupas coloridas repletas de desenhos geométricos, chapéu cheio de pontas, na mão, um cetro – a ‘marotte’ –, símbolo da loucura(8) e muitos guizos espalhados por todo o corpo. Esta figura encontra-se representada e foi muito difundida pela carta coringa do baralho. O coringa originou-se da 22ª carta do Tarô, o primeiro baralho europeu, surgido na Itália no século XVII. Ao contrário das outras cartas, esta não possuía nenhum número e ficou conhecida como il matto (“o louco” na língua original)(9). Segundo o Tarô, ela se refere à liberdade, algo extremamente próximo dos “bobos da corte” e do palhaço.
II
Não mais apenas ligado a rituais sagrados ou a reis, o palhaço ganha o espaço público e um nome: clown ou “palhaço”. A palavra inglesa clown tem sua origem no século XVI e se liga às palavras latinas colonus e clod, que têm significado próximo à homem rústico, camponês(10). Já palhaço se aproxima do italiano paglia, que seria o revestimento dos colchões e material usado pelo palhaço em sua roupa para se proteger de quedas(11). Os dois nomes, clown e palhaço, designam basicamente a mesma coisa, sendo que as diferenças advém das linhas e formas de trabalho, e não do nome que ele recebe.
Há menções a mímicos e cenas cômicas desde o surgimento do teatro na Grécia, há aproximadamente 2700 anos. O palhaço compartilha dessa tradição cômica, mas só atingiu o status de “palhaço” no período da renascença italiana, no século XVI. Neste contexto desenvolveu-se a chamada commedia dell’arte: forma teatral apoiada em máscaras e em personagens arquetípicos – Pantaleão, Arlequim, Briguela, Colombina, o Doutor, o Capitão, entre outros – que, concebendo seus personagens como estruturas fixas dotadas de determinadas características e fazendo uso do improviso, firmou as bases sobre as quais os palhaços trabalham até hoje. As situações mudavam, mas os personagens seguiam à risca o fator próprio que os caracterizava e estruturava.
Os personagens Arlequim e Briguela formavam nos enredos das comédias a dupla de zanni, ou seja, a dupla de criados. Arlequim era o criado esfomeado e atrapalhado, ao passo que Briguela era o criado astuto e briguento. Segundo Luís Otávio Burnier, a relação entre estes dois servos
[...] se aperfeiçoará nos clowns. A eles cabia a tarefa de provocar o maior número de cenas cômicas, por suas atitudes ambíguas e suas trapalhadas e trejeitos. Existiam dois tipos distintos de zanni: o primeiro fazia o público rir por suas astúcia, inteligência e engenhosidade. De respostas espirituosas, era arguto o suficiente para fazer intrigas, blefar e enganar os patrões. Já o segundo tipo de criado era insensato, confuso e tolo. Na prática, porém, havia uma certa “contaminação” de um pelo outro. [...] Pelas características acima descritas, não é difícil relacionar a dupla de zanni à dupla de clowns, o branco e o augusto.(12)
O “Branco” e o “Augusto” são dois tipos de palhaços entre tantos e certamente são os mais clássicos. O “Branco” é autoritário, usa roupas brilhantes e rosto todo branco; é a personificação do que seria correto, inteligente, erudito. O “Augusto” é o maltrapilho, atrapalhado, por vezes vagabundo e dotado de uma grande ingenuidade. Ele apanha do Branco, mas com suas trapalhadas sempre consegue escapar e dar a volta por cima de modo surpreendente. Geralmente é o mais querido pelo público e muitas vezes quando nos referimos ao palhaço imediatamente pensamos logo no “Augusto”. Mais do que denominar dois tipos de clown, a briga “Branco” versus “Augusto” é antes uma situação recorrente na comédia, o eterno embate entre erudito e popular, entre o normativo e o subversivo.
A partir da commedia dell’arte veio a pantomima inglesa, no século XVIII. Na Inglaterra os personagens da comédia italiana se encontraram com personagens que já assumiam sua veia cômica nas moralidades do teatro de feiras, no qual se destacava a figura do Diabo, que era essencialmente cômico. Bolognesi aponta que o palhaço se consolidou a partir desta fusão e o responsável foi Joseph Grimaldi, um ator inglês do teatro de variedades que fixou a indumentária do palhaço e o colocou no circo (que neste momento se constituía basicamente de números com cavalos), na virada do século XVIII para o XIX. Ironicamente, Grimaldi nunca trabalhou no picadeiro; era palhaço de palco, mas sua criação se popularizou em circos de todo mundo. Ele foi o primeiro a usar o rosto pintado de branco, grandes manchas vermelhas marcando as bochechas, a boca vermelha dando a sensação de um sorriso rasgado à força e uma inusitada peruca com os cabelos espetados(13), talvez esta a imagem mais recorrente do palhaço. Este seu trabalho – e conseqüente responsabilidade pela “criação” do palhaço moderno – é tão marcante a ponto de seu cognome “Joe”, ou “Joey”, ser tomado, na Inglaterra, como sinônimo de palhaço(14).
O palhaço habitava espaços variados, como as feiras da Idade Média e renascença, as praças e ruas das cidades modernas, palcos populares e, por último, os circos, nos quais tornou-se figura central. O palhaço é realmente um coringa, transformando os mais diversos locais e platéias, adaptando-se a eles. E é uma análise dessa sua mutabilidade, dessa “malemolência”, correlacionada ao mítico trickster que empreenderei a seguir.
III
Após esta breve pincelada na História do Palhaço, vimos que ele encontra-se presente na cultura há milênios e manifesta-se das mais diversas formas, mas o que seria um palhaço? O que o move? Sob quais bases ele é construído?
Um palhaço é acima de tudo uma criação particular, uma exteriorização de algo extremamente íntimo e puro do indivíduo; uma essência que encontra no riso e no exagero a falta de barreiras para sua emergência. O palhaço não é um personagem que alguém apenas veste; o movimento é justamente o inverso, o personagem veste o palhaço. Cabe ressaltar, porém, que o verbete personagem é inapropriado para se referir ao palhaço, pois este último nunca é estanque e sua personalidade se desenvolve de forma conjunta com a do sujeito.
Clarice Lispector, em seu livro Água viva, discorre sobre o que ela busca ao escrever. O palhaço em seu contato com o público – utilizando-se apenas de um meio diverso do de Lispector (seu corpo e o riso) –, também busca o mesmo que esta escritora:
Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. [...] É um contato com a energia circundante e estremeço. Uma espécie de doida, doida harmonia. Sei que o meu olhar deve ser de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é o bom(15).
O palhaço é essa doida harmonia, algo em estado puro, primitivo, que se liga ao mundo com o mínimo de amarras possíveis. É uma energia viva, é a sinceridade de se assumir limitado, de assumir a dor e ser capaz de rir com o objetivo de a transgredir. Ainda nas palavras de Alice Viveiros de Castro, um palhaço é um ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na guilhotina e que se expõe nu em sua tolice e estupidez. [...] Ele não conta uma história engraçada. Ele é a graça, ele é o risível. [...] Literalmente o palhaço dá a cara à tapa!(16)
Clown é transgressão de regras; é transgressão do próprio corpo. É a construção de um novo corpo, único. É a liberdade permitida através da arte, do fazer arte, da arte absolutamente viva e ao vivo, porque o clown só é naquele momento. Mesmo que haja uma cena ou um esquete previamente preparados, a graça se fará no improviso. O palhaço se entrega ao improviso, se joga no desconhecido e esse é seu material primordial.
Esse ser do palhaço encontra eco no ser do trickster: arquétipo do inconsciente coletivo que insurge para brincar com a lei e rir. Buscar as bases do palhaço no trickster é reconhecê-lo como peça importante da cultura, e portanto, de nós mesmos.
IV
Em sua teoria sobre o inconsciente, Jung postulou que este se apresenta de duas formas: o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. O inconsciente pessoal corresponde às suas camadas mais superficiais[17], nas quais estão compreendidas as questões referentes à vida particular do indivíduo, como suas percepções, idéias, experiências, memória, representações incompatíveis com o consciente, etc. Esta denominação é próxima da noção de inconsciente freudiano.
Para Jung, este inconsciente pessoal se estrutura sob bases mais profundas, que foram denominadas por ele de inconsciente coletivo. Este não seria apenas de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui os conteúdos e os modos de comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos[18]. O inconsciente coletivo seria, então, o depositário de toda uma tradição cultural da humanidade, da qual não podemos escapar e na qual estamos inexoravelmente inseridos.
A teoria jungueana defende que este inconsciente é um tesouro de imagens eternas[19] que engloba tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos[20]. Estas imagens eternas adquirem a forma de arquétipos, que são a condensação deste material mítico e primitivo em seu estado puro, representando um modelo hipotético abstrato[21].
Os arquétipos emergem sob a forma de imagens arquetípicas – as quais temos acesso através dos sonhos ou da arte, por exemplo – que adquirem uma forma de acordo com o indivíduo e seu mundo. Este processo ocorre via inconsciente pessoal e sua exteriorização assume múltiplos matizes. Porém, o arquétipo original a que ele se liga é fielmente mantido e revelado.
Um dos muitos destes arquétipos é o do trickster. O primeiro a descrevê-lo foi Paul Radin em sua análise antropológica do ciclo heróico dos índios norte-americanos Winnebagos. Este ciclo compreende quatro heróis: o Trickster (brincalhão e com impulsos infantis), o Hare (civilizador e salvador), o Red Horn (forte e com poderes sobre-humanos) e os Twins (irmãos gêmeos, um é o conciliador e o outro é o dinâmico). O trickster, então, inicia tal ciclo e era inicialmente representado pelos índios como um coiote, pois ainda não adquirira a forma humana, mas ao final de sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um homem adulto[22].
O trickster é de natureza ambígua: animal e humana, maléfica e benéfica, sublime e grotesca. É o infantil e o adulto, ou melhor, o infantil no adulto. Ele é o infrator de normas, seja para fins civilizatórios, seja porque simplesmente quis cometer tal violação. Renato Queiroz cita o exemplo do trickster Makunaíma, dos índios brasileiros Taulipang e Arekuna. Ele é o responsável pela conquista do fogo entre tais índios, pois o roubou da casa do pássaro Mutúg, que o possuía, e assim todos puderam cozer os alimentos. Mas ele também é o culpado pelas feridas dos caminhantes que vão pelas estradas, pois, de modo mágico, feriu seu próprio corpo e lançou as feridas no caminho. Estas se transformaram em pedras, que atrapalhavam os transeuntes[23].
Esta ambigüidade e imprevisibilidade o difere do pícaro, figura caricata da tradição da comédia, pois este, ao contrário do trickster, tem sua ação impelida por um pragmatismo[24], que na maioria dos casos é a fome.
Este herói mítico é um ser solitário, que se efetiva na relação com o outro, mas que volta sempre para si, o que mantêm seu caráter de excepcionalidade. O clown também possui todas estas características. Seu riso é admirado e todos se voltam para vê-lo, porém, ele é temido porque qualquer um pode ser o alvo da brincadeira – e esta nunca é apenas uma “palhaçada”. A lógica do palhaço é infantil e o limita no ridículo ao mesmo tempo em que lhe possibilita tudo fazer.
Sobre essa lógica do trickster, Jung escreve que sob outros aspectos ele é mais estúpido que os animais, caindo de um ridículo desajeitado a outro. Embora não seja propriamente mau, comete, devido à sua inconsciência e falta de relacionamento, as maiores atrocidades. [...] O trickster é um ser originário “cósmico”, de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente. Nem está à altura do animal devido à sua notável falta de instinto e desajeitamento. Estes defeitos caracterizam sua natureza humana, a qual se adapta às condições do ambiente mais dificilmente do que um animal. Em compensação porém se candidata a um desenvolvimento da consciência muito superior, isto é, possui um desejo considerável de aprender, o qual também é ressaltado pelo mito[25].
O exagero e a excentricidade do palhaço o inserem nesse movimento de superioridade/inferioridade do trickster em relação ao homem, mencionado por Jung. No palhaço tudo é ressaltado, sejam seus atos heróicos, seja sua dor e imbecilidade. Em cenas com outros – palhaços ou público – o clown transita entre momentos de glória quando surpreende a platéia com sua inteligência e sagacidade e outros em que é enganado devido à referida insensatez; nestes últimos até apanha, recebendo tapas e pontapés. Tudo isto se encontra circunscrito na mesma figura e, muitas vezes, na mesma cena. Não há um palhaço bom ou mau, ele é os dois ao mesmo tempo. Claro que em alguns clowns algumas características serão ressaltadas devido ao “molde” humano do ator que o incorpora. Mesmo assim, ele mantém a totalidade do ser do clown.
O palhaço é um transgressor e isto ocorre no momento em que, mesmo de forma sutil, oferece uma nova possibilidade para aquilo que se encontrava rígido há tempos. É a personificação do insólito, do não usual, da não norma. Um ponto interessante a ser ressaltado é que tal forma de lidar com o mundo aparece até em suas vestimentas: seu nariz é protuberante e vermelho, sua roupa adquire as mais variadas formas e texturas, seus sapatos são enormes ou no mínimo diferentes, sua maquiagem e cabelo são igualmente livres de modelos prévios e acima de tudo ele constitui-se de uma explosão de cores. Ao palhaço todas as cores, formas e ações são permitidas. E já que ele possui essa permissão para brincar, acaba desempenhando um papel de questionador social. Sobre a importância desta permanência do palhaço como um agente social, novamente recorro aos estudos de Renato Queiroz:
O trickster colocaria em jogo, assim, o inesperado, o indefinido, desrespeitando, no nível do imaginário, a própria ordem social. Ainda segundo Balandier, o seu papel seria, sob muitos aspectos, semelhante ao de outros personagens – bufões, mascarados, bobos da corte – aos quais se concede licença para que possam zombar da ordem estabelecida, “quebrando aparências e desfazendo ilusões”. Muito embora as transgressões cometidas por tais figuras sejam autorizadas pela sociedade, a própria ordem acabaria sendo assim reforçada, por meio de um processo catártico, e ainda com o mérito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso as normas, os códigos e os interditos viessem a se dissolver. Elemento, a um só tempo, perturbador e agente da ordem, decorreria disto a ambigüidade do trickster[26].
O papel do palhaço seria, então, o de questionar a ordem social e não exatamente o de modificá-la. O palhaço é a constante escapulida, a subversão da ordem e a subversão da subversão, pois uma vez subvertida, seu produto já não interessa mais; é nova ordem. Seu prazer está em agir e provocar uma agitação no público, incitando-o a repensar o mundo e a si próprio. O clown pode, neste movimento, ser um agente da ordem, mas nunca sem antes lançar sobre ela todas as suas cores, objetivando uma maior reflexão e ampliação do homem e de seu meio, agindo em seu imaginário. Como afirma Paul Radin a respeito do trickster, ele representa os esforços que fazemos todos para cuidarmos dos problemas do nosso crescimento, ajudados pela ilusão de uma ficção eterna[27].
Considerações finais
O palhaço, apesar de ser a personificação do riso, tem um objetivo e um papel muito sério. Ele busca basicamente a ampliação da vida e de suas potencialidades e possibilidades. Conrado Federici28 afirma que é na ridicularização dos costumes que tal ampliação acontece e partilho deste mesmo pensamento. O lugar do clown encontra-se no que é difícil e aparentemente impossível, pois ele precisa de barreiras para poder dar a volta por cima e se realizar. E assim, rir de seus feitos, sejam eles fantásticos ou ridículos. O riso funciona de modo catártico, mas acima de tudo o clown ri porque ele é prazer: sentido, doado, colocado em cena.
Não há como não notar aquela figura sempre diferente, mas que todos conhecemos desde a mais tenra infância. Geralmente ele é amado pela grande maioria, principalmente as crianças, mas, assim como o trickster, sempre existe aquele que por algum motivo não gosta de palhaço ou mesmo o odeia. Ele provoca o amor ou o ódio ou ambos, mas nunca a indiferença. Ele é necessariamente espetacular.
O trickster, aqui personificado no palhaço, é essa ficção eterna aludida por Radin, é o mito que retorna em nova roupagem, mas que também é velha, ancestral, primordial. Segundo a concepção da psicologia analítica, ele é matéria de nosso ser, material do inconsciente coletivo que deve ser trazido à tona e trabalhado de forma a proporcionar ao homem uma vivência plena, uma busca que procure trazer à luz aquilo que realmente somos.
Todos nós temos nosso clown. Ele apenas se encontra adormecido, pronto para ser descoberto, bastando apenas coragem e vontade para entrar em contato com essa nossa “besta interior” (the beast withim).
NOTAS E BIBLIOGRAFIA
1 Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ/MG
2 Agradeço ao professor Walter Melo pelas indicações e comentários.
3 Cf. QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 93-107, 1991, p. 94.
4 Cf. CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005, p. 18.
5 Idem, ibidem, p. 19.
6 Idem, ibidem, p. 20.
7 Idem, ibidem, p. 21.
8 Idem, ibidem, p. 32.
9 Cf. História do Baralho. Disponível em: http://www.copag.com.br/portalcopag/ . Acesso em: 08 mai. 2007.
10 Cf. BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 62.
11 Cf. RUIZ, Roberto citado BURNIER, Luis Otávio. A arte do ator – da técnica à representação. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002.
12 BURNIER, Luís Otávio, op. cit., p. 207.
13 CASTRO, Alice Viveiros de, op. cit., p. 62-63.
14 BOLOGNESI, Mário Fernando, op. cit., p. 63.
15 Cf. LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1976, p. 12-13.
16 CASTRO, Alice Viveiros de, op. cit., p. 257.
17 Cf. SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 72.
18 Cf. JUNG, Carl Gustav. Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo. In: Obras completas de Carl Gustav Jung, v.9, t.1. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 15.
19 Idem, ibidem, p. 19.
20 Idem, ibidem, p. 16.
21 Idem, ibidem, p. 17.
22 Cf. HENDERSON, Joseph L. Os mitos antigos e o homem moderno. In: JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1979, p. 112.
23 QUEIROZ, Renato da Silva, op. cit., p. 94-95.
24 Idem, ibidem, p. 93.
25 Cf. JUNG, Carl Gustav. A psicologia da figura do “trickster”. In: Obras completas de Carl Gustav Jung, v.9, t.1. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 259, grifo do autor.
26 QUEIROZ, Renato da Silva, op. cit., p. 96.
27 Cf. RADIN, Paul citado por HENDERSON, Joseph L, op. cit., p. 112.
28 Cf. FEDERICI, Conrado Augusto Gandara. De palhaço e clown: que trata das origens e permanências do oficio cômico e mais outras coisas de muito gosto e passatempo. Campinas: UNICAMP, 2004. Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Educação da UNICAMP.