(Psiquiatra HCFMUSP – fnfalcone@uol.com.br)
O palhaço, para nós humanos, representa uma figura arquetípica. Desde os primórdios da civilização há relatos da presença desta figura: Na civilização egípcia, na mitologia grega, na Bíblia, nas feiras comerciais da idade média, na corte das monarquias, no circo, no teatro, no cinema, na televisão e, mais recentemente, nos hospitais.
O palhaço esta na dimensão do universo mítico. Sua presença causa impacto direto no inconsciente. Ele é o arquétipo do tonto, do pateta, do idiota, do paspalho. Simboliza a imperfeição humana. O palhaço revela o tempo todo tudo o que sente, inclusive os aspectos que ao longo da vida aprendemos a esconder. Ele revela o nosso lado primitivo. É verdadeiro em expressar seu sentimento pela vida como numa criança de dois ou três anos de idade.
Jung (1959) disse que o “trickster” é uma das melhores formas de manter consciente figura da sombra. O palhaço ensina ao ser humano, através do riso, a aceitar esta figura. Segundo Sampaio (1993), quando aprendemos a rir de nós mesmos e das coisas importantes contatamos um novo registro em nós. Abandonamos a idéia de controlar o destino. O brincar do palhaço é assumir a força própria dos acontecimentos da vida, é comemorar a vida em sua dimensão não dominável.
Recentemente o palhaço foi levado ao hospital. Ele faz intervenções semanais com pacientes internados. O impacto desta figura causou modificações nos pacientes. O palhaço se mostra como mais um recurso para lidar com o sofrimento humano.
A história
Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
(...)
Sou eu mesmo, o trocado,
(...)
Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
(...) Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio!...
(Fernando Pessoa)
O palhaço é um arquétipo. Representa a imperfeição humana, o defeito, a paspalhice. Essa figura esteve sempre presente nas civilizações. Provavelmente, desde os povos primitivos, deve ter havido aquele que era mais desajeitado e que tropeçava mais que os outros. Esse símbolo aparece no antigo testamento, no Egito, na grecia antiga, nas cortes das monarquias européias, no circo, no cinema, na televisão, no teatro e, mais recentemente, nos hospitais.
Segundo Thebas (2005), no Antigo Egito havia os dangas, pigmeus africanos que entretinham os faraós. Eles se vestiam com peles de leopardo e imitavam Bes (deus anão protetor da família) e dançavam de um jeito tão divertido que faziam “a corte rir e o coração do rei se regozijar”.
Na China Antiga, ainda segundo Thebas (2005), além dos bufões andarilhos, que divertiam as pessoas nas ruas e nos centros comerciais, também existiam bufões na corte. O mais conhecido deles foi Yu Sze, que trabalhava na corte do imperador que mandou contruir a muralha da China (séc. III a.C.).
Na mitologia grega, esse arquétipo se corporificou em Hermes Trimegisto (Mercúrio na tradição Romana).
Por ter furtado o rebanho de Apolo, se tornou o símbolo de tudo quanto implica em astúcia, ardileza e trapaça: é um verdadeiro trickster, um trapaceiro, um velhaco, um companheiro amigo e protetor dos comerciantes e dos ladrões(...) Brandão (2005).
Além disso, Hermes é o mensageiro dos Deuses. Por conhecer todos os caminhos, ele tem livre acesso à luz e às trevas (Hades). É o protetor dos viajantes, o guardião dos caminhos, o conhecedor das encruzilhadas. No sentido simbólico, Hermes faz a ligação entre consciente e inconsciente. Em suas representações, leva nas mãos um bastão de arauto (o caduceu), em torno do qual se enrolam duas serpentes, que representam os princípios contrários. Ele é considerado hermafrodito, como o mercúrio para os alquimistas: feminino por ser branco e líquido e masculino por ser um metal seco.
Thebas (2005) diz que, na Idade Média, consagrou-se a figura do bobo da corte, bufões contratados para entreter nobres, reis e até mesmo padres. A posse de um bufão era sinônimo de status. Os nobres disputavam quem tinha o bobo mais engraçado. Eles eram uma paródia do Rei. Seu chapéu lembrava uma coroa disforme, de cabeça para baixo. Suas roupas eram nas cores verde, amarelo e, as vezes, vermelho. Verde era a cor do chapéu dos condenados e do gorro que se obrigava usar os devedores e os comerciantes falidos. Amarelo era a cor que se pintavam a cara dos condenados por crime de lesa-majestade. Também se colocavam um sinal amarelo, na altura do estômago, na roupa dos judeus, para que todos soubessem que não eram cristãos. Os bobos da corte não só divertiam e consolavam os poderosos, como também os aconselhavam e advertiam. São exemplos o bobo inglês Golet, da corte de Wiliam, o conquistador e o bobo frances Seigni Johan da corte de Felipe VI.
Monteiro (2006), professor de Artes Circenses da Unicamp, fala que a figura do palhaço que mais comumente se conhece hoje é a do circo, inspirado no bobo shakespereano e na Comédia Dell'Arte italiana, nasceu no século XVIII. Naquela época, o circo moderno estava nascendo, dando mostra de coisas esplêndidas, incomuns ao grande público: equilibristas, mágicos, malabaristas, números eqüestres, trapezistas eram as atrações. No picadeiro do Inglês Philip Astley surgiu a primeira figura do palhaço de circo. Suas atitudes eram grotescas e exageradas, contrapondo-se a perfeição dos movimentos das demais apresentações. Era uma linguagem que se aproximava do público. Cada gesto dele tem a função de se aproximar do cotidiano das pessoas, ele colocava em cena as características da realidade. No Brasil, esse caricato ganhou fama com Abelardo Pinto, o Piolin. Depois vieram Arrelia, Carequinha, Picolino, Pimentinha entre outros.
O palhaço é um arquétipo. Representa a imperfeição humana, o defeito, a paspalhice. Essa figura esteve sempre presente nas civilizações. Provavelmente, desde os povos primitivos, deve ter havido aquele que era mais desajeitado e que tropeçava mais que os outros. Esse símbolo aparece no antigo testamento, no Egito, na grecia antiga, nas cortes das monarquias européias, no circo, no cinema, na televisão, no teatro e, mais recentemente, nos hospitais.
Segundo Thebas (2005), no Antigo Egito havia os dangas, pigmeus africanos que entretinham os faraós. Eles se vestiam com peles de leopardo e imitavam Bes (deus anão protetor da família) e dançavam de um jeito tão divertido que faziam “a corte rir e o coração do rei se regozijar”.
Na China Antiga, ainda segundo Thebas (2005), além dos bufões andarilhos, que divertiam as pessoas nas ruas e nos centros comerciais, também existiam bufões na corte. O mais conhecido deles foi Yu Sze, que trabalhava na corte do imperador que mandou contruir a muralha da China (séc. III a.C.).
Na mitologia grega, esse arquétipo se corporificou em Hermes Trimegisto (Mercúrio na tradição Romana).
Por ter furtado o rebanho de Apolo, se tornou o símbolo de tudo quanto implica em astúcia, ardileza e trapaça: é um verdadeiro trickster, um trapaceiro, um velhaco, um companheiro amigo e protetor dos comerciantes e dos ladrões(...) Brandão (2005).
Além disso, Hermes é o mensageiro dos Deuses. Por conhecer todos os caminhos, ele tem livre acesso à luz e às trevas (Hades). É o protetor dos viajantes, o guardião dos caminhos, o conhecedor das encruzilhadas. No sentido simbólico, Hermes faz a ligação entre consciente e inconsciente. Em suas representações, leva nas mãos um bastão de arauto (o caduceu), em torno do qual se enrolam duas serpentes, que representam os princípios contrários. Ele é considerado hermafrodito, como o mercúrio para os alquimistas: feminino por ser branco e líquido e masculino por ser um metal seco.
Thebas (2005) diz que, na Idade Média, consagrou-se a figura do bobo da corte, bufões contratados para entreter nobres, reis e até mesmo padres. A posse de um bufão era sinônimo de status. Os nobres disputavam quem tinha o bobo mais engraçado. Eles eram uma paródia do Rei. Seu chapéu lembrava uma coroa disforme, de cabeça para baixo. Suas roupas eram nas cores verde, amarelo e, as vezes, vermelho. Verde era a cor do chapéu dos condenados e do gorro que se obrigava usar os devedores e os comerciantes falidos. Amarelo era a cor que se pintavam a cara dos condenados por crime de lesa-majestade. Também se colocavam um sinal amarelo, na altura do estômago, na roupa dos judeus, para que todos soubessem que não eram cristãos. Os bobos da corte não só divertiam e consolavam os poderosos, como também os aconselhavam e advertiam. São exemplos o bobo inglês Golet, da corte de Wiliam, o conquistador e o bobo frances Seigni Johan da corte de Felipe VI.
Monteiro (2006), professor de Artes Circenses da Unicamp, fala que a figura do palhaço que mais comumente se conhece hoje é a do circo, inspirado no bobo shakespereano e na Comédia Dell'Arte italiana, nasceu no século XVIII. Naquela época, o circo moderno estava nascendo, dando mostra de coisas esplêndidas, incomuns ao grande público: equilibristas, mágicos, malabaristas, números eqüestres, trapezistas eram as atrações. No picadeiro do Inglês Philip Astley surgiu a primeira figura do palhaço de circo. Suas atitudes eram grotescas e exageradas, contrapondo-se a perfeição dos movimentos das demais apresentações. Era uma linguagem que se aproximava do público. Cada gesto dele tem a função de se aproximar do cotidiano das pessoas, ele colocava em cena as características da realidade. No Brasil, esse caricato ganhou fama com Abelardo Pinto, o Piolin. Depois vieram Arrelia, Carequinha, Picolino, Pimentinha entre outros.
Disponível: . Acesso no dia: 22 de maio de 2006.
No século XX com a chegada do cinema e da televisão, esse arquétipo também se incorpora nessas mídias. São exemplos Charles Chaplin, Buster Keaton, os irmãos Marx, Harold Loyd, Jerry Lewis, Woody Allen. No Brasil, se destacam Oscarito, Grande Otelo, Mazzaropi.
Mais recentemente, o palhaço se incorpora também nos ambientes hospitalares. Alguns grupos como os “Doutores da Alegria”, os “Doutores do Riso”, o “Canto Cidadão”, o “Pirlimpsiquice”, o “Dom Quixote” visitam regularmente hospitais.
O Branco e o Augusto
AUGUSTO – Estou com sede!
CLOWN BRANCO – Você tem dinheiro?
AUGUSTO – Não.
CLOWN BRANCO – Então você não está com sede.
Fellini (2004), pág. 161
A partir do surgimento do palhaço no circo moderno, essa figura polariza-se em pares antagônicos: o Branco e o Augusto. Segundo o historiador Mário Fernando Bolognesi isso é um reflexo das relações sociais que se estabelecem no final do século XIX. Com o surgimento da indústria, surgem as relações patrão x empregado.
O Clown Branco tem como característica a “boa educação”, refletida na fineza dos gestos e na elegância nos trajes e nos movimentos. Usa um chapéu em forma de cone e suas vestes são de tecido nobre. Representa a moralidade, a elegância, os ideais aristocráticos, a lucidez, a inteligência. Para ele, há regras bem definidas, há poucas possibilidades e as dele são sempre melhores. É o porta voz das verdades indiscutíveis. É o que se deve ser. Sua feição é má e triste. Representa uma caricatura da Persona.
O Augusto, ao contrário, é o bobo, o alegre. Veste-se de roupas velhas, pinta o nariz de vermelho. August, em dialeto berlinense, designava as pessoas que se encontravam em situação ridícula, ou ainda aquelas que se faziam de ridículas. Representa o estúpido, o submisso, o desajeitado, o rude, o indelicado. A maioria dos palhaços da atualidade são Augusto. Hoje, o contraponto do “Clown Branco” é feito pela platéia, pela realidade cotidiana que se impõe, pelas instituições.
É o menino que faz cocô nas calças, rebela-se na presença de uma perfeição parecida, se embebeda, rola no chão e anima uma contestação perpétua. (...) No circo, por intermédio do Augusto, a criança pode se imaginar fazendo tudo o que é proibido: vestindo-se de mulher, fazendo caretas, gritando na praça, dizendo em voz alta o que pensa. (...) Talvez os Augustos sejam mais precisos, uma imagem subproletária, de corte de milagres, os desnutridos, os aleijados, os rejeitados, os que quando muito são capazes de se revoltar, mas não de fazer uma revolução. É provável que o povo sempre os tenha tratado com intimidade porque, em razão de sua condição miserável, sempre teve uma certa familiaridade com o horrendo. Fellini (2004).
O Augusto é uma caricatura da Sombra e a dupla Augusto/Branco alude a paradoxal condição humana.
Mais recentemente, o palhaço se incorpora também nos ambientes hospitalares. Alguns grupos como os “Doutores da Alegria”, os “Doutores do Riso”, o “Canto Cidadão”, o “Pirlimpsiquice”, o “Dom Quixote” visitam regularmente hospitais.
O Branco e o Augusto
AUGUSTO – Estou com sede!
CLOWN BRANCO – Você tem dinheiro?
AUGUSTO – Não.
CLOWN BRANCO – Então você não está com sede.
Fellini (2004), pág. 161
A partir do surgimento do palhaço no circo moderno, essa figura polariza-se em pares antagônicos: o Branco e o Augusto. Segundo o historiador Mário Fernando Bolognesi isso é um reflexo das relações sociais que se estabelecem no final do século XIX. Com o surgimento da indústria, surgem as relações patrão x empregado.
O Clown Branco tem como característica a “boa educação”, refletida na fineza dos gestos e na elegância nos trajes e nos movimentos. Usa um chapéu em forma de cone e suas vestes são de tecido nobre. Representa a moralidade, a elegância, os ideais aristocráticos, a lucidez, a inteligência. Para ele, há regras bem definidas, há poucas possibilidades e as dele são sempre melhores. É o porta voz das verdades indiscutíveis. É o que se deve ser. Sua feição é má e triste. Representa uma caricatura da Persona.
O Augusto, ao contrário, é o bobo, o alegre. Veste-se de roupas velhas, pinta o nariz de vermelho. August, em dialeto berlinense, designava as pessoas que se encontravam em situação ridícula, ou ainda aquelas que se faziam de ridículas. Representa o estúpido, o submisso, o desajeitado, o rude, o indelicado. A maioria dos palhaços da atualidade são Augusto. Hoje, o contraponto do “Clown Branco” é feito pela platéia, pela realidade cotidiana que se impõe, pelas instituições.
É o menino que faz cocô nas calças, rebela-se na presença de uma perfeição parecida, se embebeda, rola no chão e anima uma contestação perpétua. (...) No circo, por intermédio do Augusto, a criança pode se imaginar fazendo tudo o que é proibido: vestindo-se de mulher, fazendo caretas, gritando na praça, dizendo em voz alta o que pensa. (...) Talvez os Augustos sejam mais precisos, uma imagem subproletária, de corte de milagres, os desnutridos, os aleijados, os rejeitados, os que quando muito são capazes de se revoltar, mas não de fazer uma revolução. É provável que o povo sempre os tenha tratado com intimidade porque, em razão de sua condição miserável, sempre teve uma certa familiaridade com o horrendo. Fellini (2004).
O Augusto é uma caricatura da Sombra e a dupla Augusto/Branco alude a paradoxal condição humana.
(...) são a luta entre o culto soberbo da razão (que atinge um estetismo proposto com prepotência) e o instinto, a liberdade do instinto. (...) São o professor e o menino, a mãe e o filho mimado, se poderia dizer, por fim, o anjo com a espada flamejante e o pecador. Estas são duas atitudes psicológicas do homem: o impulso para o alto e o impulso para baixo, divididos, separados. (...). As duas figuras encarnam um mito que esta dentro de cada um de nós: a reconciliação dos contrários, a unicidade do ser. (...) Aquela mágoa que existe na contínua guerra entre o Clown Branco e o Augusto não se deve às circunstâncias nas quais se apresenta aos nossos olhos um fato que diz respeito à nossa incapacidade de conciliar as duas figuras. De fato, quanto mais se quiser obrigar o augusto a tocar o violino, mais ele soltará puns com a corneta. Além disso, o Clown Branco pretenderá que o Augusto seja elegante. Mas, quanto mais autoritário for esse pedido, mais o outro será maltrapilho, tosco, empoeirado. Fellini (2004).
Um emissário da Sombra
Jung escreveu sobre esse arquétipo no artigo “A psicologia da figura do Trickster”. Segundo ele, a figura do “trickster” representa, na consciência, nossa parte inconsciente do ego.
A figura do trickster representa o melhor método e o mais bem sucedido, de manter consciente a figura da sombra e assim expô-la a crítica da consciência Jung (1959).
Em sua teoria, Jung divide o ego em duas estruturas básicas: a persona e a sombra. Persona era o termo usado pelos romanos para designar a máscara de um ator. É a nossa parte que desempenha o papel oficial, o cotidiano. É a pessoa que resulta dos processos de aculturação, educação, adaptação aos nossos meios físico e social.
As partes da personalidade contrárias aos costumes e convenções morais da sociedade residem na sombra. Quando crescemos temos que nos adaptar e enfrentar o mundo. Nosso ego, de um modo inteiramente involuntário, emprega a sombra para executar operações desagradáveis que ele não poderia realizar sem cair num conflito moral. Se olharmos profundamente em nossas vontades, preferências e intenções observaremos capacidades como a de ser egoístas, obstinados, insensíveis, dominadores, a de satisfazer a todo custo os desejos pessoais de poder e de prazer.
Para o palhaço, todos os nossos aspectos internos devem ser aceitos e revelados. É um estado de total fragilidade, de nudez da alma. Ele aceita tudo de si e do outro. Aceita a realidade implacável. Nunca representa ou disfarça. O palhaço simplesmente revela ao público aquilo que esta sentindo naquele momento, sem crítica. Inclusive os elementos de sua sombra. Como fazíamos quando éramos crianças: as birras, o ciúmes de emprestar o brinquedo, o comentário sincero quando não gostamos de alguém. E é essa espontaneidade que o torna risível.
Se rechaçamos completamente a sombra, a vida é correta, mas terrivelmente incompleta. Ao abrirmo-nos para a experiência da sombra, entretanto, alcançamos um maior grau de totalidade.
Ao ficar consciente de minha sombra eu lembro, mais uma vez, que sou ser humano como qualquer outro. (...) A sombra, apesar de ser identificada como uma figura negativa, deixa entrever, muitas vezes, traços ou associações positivas. É como se ela escondesse conteúdos significativos em um invólucro inferior. Este aspecto do ego, muitas vezes demasiado juvenil, oculta o tipo do “velho sábio” (o mago, o rei etc) Jung (1959).
O mito
O palhaço é uma figura mítica. Sua presença atua diretamente no inconsciente. É por essa constatação que o palhaço pode ser útil no ambiente hospitalar.
O efeito vivo do mito é vivenciado quando uma consciência superior, que se regozija com sua liberdade e independência, se confronta com a autonomia de uma figura mitológica, sem poder escapar do seu fascínio, tendo que prestar seu tributo à impressão subjugante. A figura atua porque tem uma correspondência secreta na psique do espectador, aparecendo como um reflexo da mesma, o qual, no entanto, não é reconhecido como tal. A figura esta cindida da consciência subjetiva e se comporta por isso como uma personalidade autônoma. O “trickster” é a figura da sombra coletiva, uma soma de todos os traços de caráter inferior, Jung (1959).
O palhaço lida com a sombra através da comicidade. O senso de humor trás uma nova perspectiva para a visão fatalista do mundo. Quando aprendemos a rir de si próprios e das coisas importantes contatamos um novo registro em nós. Abandonamos a idéia de controlar o destino. O brincar do palhaço é assumir a força própria dos acontecimentos da vida, é comemorar a vida em sua dimensão não dominável.
No Palhaço encontro, encarnada e restaurada, uma dimensão positiva e criadora do riso, que faz renascer um mundo múltiplo e fervilhante. É ele o risonho porteiro do circo que, com seu humor, nos convida para o espetáculo da vida, espetáculo de um mundo convertido em picadeiro. (...) Á medida que o palhaço incorpora, pela ação, pantomima e palavra, a coexistência de realidades opostas da vida, jogando, tateando, brincando, com estas oposições sem tentar reconcilia-las, ele nos conecta com a mobilidade do mundo mais que com sua estrutura, com o acontecer ininterrupto, mais que com a sucessão de instantes fotografados e encerrados nos limites de uma moldura. Deslizando com o palhaço em seu viver, temos estado a descobrir no mundo a sua vibração, sua graça, sua palhacice. (...) A presença do palhaço é transformadora, pois reinventa, a todo instante, nosso olhar para a vida. Por ver o mundo pelo grotesco é inofensivo e alegre, nele o medo é vencido pelo riso. Sampaio (1993).
A arte no hospital
A utilização de recursos artísticos em hospitais psiquiátricos, com o objetivo de auxiliar na recuperação dos pacientes, é uma atividade que se inicia no século XX. Destacam-se Osório Cezar (1923) e Nise da Silveira (1946) como pioneiros, utilizando-se de recursos das artes plásticas.
Para a psiquiatra e arteterapeuta Carmen L.A. de Santana tanto na arte como nos processos terapêuticos se manifesta a capacidade humana de perceber, figurar, dimensionar e redimensionar a relação do sujeito com o mundo e as relações do sujeito consigo mesmo. A arte facilita estes processos, pois se lida literalmente com figuras, configurações, espaços e movimento. O espaço de criação artística possibilita ao sujeito uma ampla experiência de autonomia, de liberdade e de responsabilidade por suas próprias atitudes porque provê uma realidade alternativa na qual este sujeito é livre para experimentar o novo, eximido das conseqüências que o cotidiano lhe impõe.
O fazer artístico do palhaço se da através de uma relação deste com o outro. No hospital, este outro não é somente o paciente, mas também toda equipe que nele trabalha. Sua presença transforma o ambiente para todos que ali estão. Ele é um veículo facilitador para que o novo possa emergir no ambiente físico e nas relações inter e intra-pessoais.
Palavras-chave
Palhaço, sombra, arteterapia.
Referências
Bolognesi, M. F. (2003). Palhaços. São Paulo, Ed. Unesp, pág. 57 – 103.
Brandão, J.S. (2005). Mitologia Grega vol. II. Petrópolis, Ed. Vozes, pág. 191 – 208.
Fellini, F. (2004). Fazer um Filme. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, pág. 149 – 185.
Jung, C.G. (1959). On the Psychology of the trickster-figure. The arquetyps and the collective unconscious V.9 – London, Ed. Routledge & K. Paul, pág. 255-274.
Jung, C. G. (1954). Pratice of psychotherapy V.16. London, Ed. Routledge & K. Paul.
Sampaio, C.P. (1993). Entre Palhaços e Capitães. Junguiana Rev. Brasileira de Psicologia Analítica, no. 10, pág. 38 – 45.
Santana, C.L.A. (2004). Avaliação de resultados em arteterapia. São Paulo, tese (doutorado), pág. 22.
Stein, M. (1998). Jung o mapa da Alma. São Paulo, Ed. Cultrix, pág. 97.
Thebas, C. (2005). O livro do Palhaço; ilustrações de Marcelo Cipis. São Paulo, Ed. Companhia das Letrinhas.